CORA CORALINA: ENTRE DOCES E POEMAS

Um pouco sobre a vida e obra de uma poeta do interior do Brasil.

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Anna Lins de Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida pelo seu pseudônimo de Cora Coralina, é um milagre da poesia brasileira. Quem poderia imaginar que uma senhorinha de aspecto simpático que fazia doces para vender se tornaria uma das poetas mais lidas e respeitadas no Brasil?

Quando criança, Cora, a Aninha, vivia com a sua família num Casarão à moda antiga. Uma casa que foi construída por volta do século XVIII. Ela era considerada "feia" e "moleirona" (pernas bambas), pois vivia caindo no chão de tão atrapalhada que ele era. Tendo essa infância de menina excluída e rejeitada pela própria família, uma infância "triste' como ela mesmo dizia, se refugiou na poesia e na literatura. Era o seu mundo secreto. Uma forma de lidar com os seus sentimentos. Aos 14 anos começou a sua produção poética com mais intensidade, foi nessa idade que ela escolheu para si o nome de Cora Coralina, porque já haviam muitas Anas, devido à Santa Ana. Uma forma de forjar para si uma identidade que lhe cabia.


Quando jovem, muitos diziam que ela não se casaria por ser muito feia. Ela se sentia desajeitada e deslocada. Mas, não foi o que aconteceu. Ela conheceu um homem, já casado, que a cativou. Ela então fugiu com ele para São Paulo. Ficou marcada pelo esteriótipo de mulher "indecente".

Depois de muitos anos, Cora retornou para a velha Goiana e recuperou o casarão da família, passando a vender doces e a produzir poemas. Certa vez, já idosa, Carlos Drummond de Andrade, o conhecido poeta e cronista do Jornal do Brasil, entrou em contato com os poemas dela. Drummond se encantou com o que leu e escreveu uma crônica sobre Cora. O que foi suficiente para os olhos e as atenções se voltarem para ela, uma dona de casa doceira do interior do Brasil.

Seu reconhecimento veio tarde, ela viu seu primeiro livro ser publicado por uma grande editora quando já contava mais de setenta anos de idade. Mas ela nunca desistiu nos deixando a valiosa lição de persistir no que se faz, ainda que pareça impossível. Ela conseguiu. Provou o seu talento. Tanto nos doces como nos poemas.

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Seus poemas, sensíveis e simples, traduzem um conteúdo humano, uma profundidade sertaneja que retrata a vida de pessoas simples do interior, das suas lutas e complicações da vida "as pedras" no caminho das pessoas. Sua cidade, sua infância configuraram um tema muito recorrente em sua produção. Assim como as mulheres que a criaram.

Na velha Casa da Ponte, funciona um espaço cultural e museu dedicado à memória dessa poeta brasileira tão aclamada. Hoje, Cora Coralina é lida em todo o Brasil e leitura obrigatória em algumas provas de vestibular. É muito difícil encontrar um estudante que não tenha sequer ouvido falar do nome dela. 

Aproveite para assistir um vídeo sobre Cora Coralina e ler, na íntegra, a crônica do Drummond e a carta que ele enviou à Cora!
    
          

Reprodução da Crônica de Drummond sobre Cora Coralina

Cora Coralina, de Goiás

“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.

Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando musica de sereias antigas e de Dona Janaína moderna

Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada.

Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos:
“Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito”. “Vive dentro de mim/ a mulher proletária. / Bem linguaruda, / desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/ a mulher da vida. / minha irmãzinha... / tão desprezada, / tão murmurada...”.

Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto foi a experiência pessoal que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto(“Leves e verticais. Jamais sofisticadas. / Seguras nos seus calços / de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece. / sou o cocho abastecido donde rumina o gado. / sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor.”.

Assim é cora coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os bonecos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referencia especial, tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Ás vezes, ia de empréstimo / à casa da boa Tia Norita. / E era certo no centro da mesa/ de aniversário, com sua montanha / de empadas bem tostadas / No dia seguinte, voltava, / conduzido por um portador/ que era sempre o abdenago, preto de valor, / e, melhor cheirinho / de doces e salgados. / tornava a relíquia para o relicário...”.

Relicário é também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina. Remontando a infância, não a ornamenta com flores falsas: “éramos quatro as filhas de minha mãe. / entre elas ocupei sempre o pior lugar”. Lembra – se de ter sido “triste, nevorsa e feia. / Amarela de rosto empalamado. / de pernas moles, caindo à toa”. Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendia. Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica.

Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na sua solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial da editora, em época de festas. A obra foi publicada pela universidade federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros sem estabelecermos critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.
Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo”. Opõe a morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e gosto de ter sido. Mulher operária”.
Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira."

Carlos Drummond de Andrade

(Jornal do Brasil, cad. B, 27 – 12 – 80)

Carta enviada à Cora

"Minha querida amiga Cora Coralina:
Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que
não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e
comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência
humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com
as fontes da vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós
todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia (...).
Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento
e me submeti a uma cirurgia. Mas agora, já recuperado, estou em
condições de dizer, com alegria justa: Obrigado, minha amiga!
Obrigado, também, pelas lindas, tocantes palavras que escreveu para
mim e que guardarei na memória do coração.
O beijo e o carinho do seu
Drummond."

Andrade, Carlos Drummond de [Rio de Janeiro, 7 out. 1983]. Carta de Drummond. In: Coralina, Cora. Vintém de cobre : meias confissões de Aninha. 4. ed. p. 23.

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