A INVENÇÃO DO BEIJO

Leia uma crônica de Marco Antônio Almeida


Felipe Stefani



POR MARCO ANTÔNIO DE ALMEIDA

Numa época terciária e cenozóica a mulher de Neanderthal (sim, não existia só o homem de Neanderthal!), esfomeada... Insatisfeita... Infeliz. Através de grunhidos lamuriou-se com seu parceiro, que de forma desajeitadadecidiu sair à caça. Embrenhando-se na floresta deu de cara com um mamute de tamanho médio e com uma estaca enfrentou-o. Venceu o animal com algum custo. E, soltou um grito primata ao fim da luta, era um sinal primitivo de alegriaCarregou com certa sofreguidão em seu ombro arcado, o pesado animal até a lagoa onde se banhou e lavou a carcaça do futuro alimento...

Foi por impulso que puxou com força a cabeça até arrancá-la do corpo do bicho... Ao ver frutos silvestres devorou-os e prosseguiu quebrando com violência os membros do mamute... O tempo era todo dele, não existia pressa, não existia calma. Não existia sentimento. Nem sei se existia algum raciocínio... Existia era fome e a mulher tinha muita fome. O homem também, mas primitivamente a fome da mulher que permaneceu repousando na caverna era mais importante, de uma importância estranha que ele mal entendia.

A carne do mamute foi o alimento de várias luas, de vários e imprecisos instantes. Os dois comiam lado a lado e ao cair da escuridão, deitados também lado a lado acabavam em dias frios esquentando um ao outro. Havia algo, entretanto... E nenhum dos dois compreendia.

A mulher já naquele remoto tempo era mais criativa, possuía mais iniciativa e não perdeu a oportunidade que se apresentou...

E aconteceu que a carne do mamute estava chegando ao fim sobrando apenas um naco... E o naco tinha uma aparência muito boa... Estava dando sopa sobre a pedra polida no fundo da caverna. Os dois sem entenderem nada ficaram esperando por um sinal qualquer... A mulher já naquele remoto tempo era mais criativa, possuía mais iniciativa e não perdeu a oportunidade que se apresentou... Pegou com rapidez o pedaço de carne e o colocou na boca iniciando a mastigação. Instintivamente, eis que o que se deu foi inesperado, inusitado e incrível: o homem agarrou a cabeça da mulher com quase a mesma força com que arrancou a do mamute luas antes e foi em busca do naco de carne com sua boca na da mulher. Como a carne se encontrava já bem mastigada, ele enfiou a língua e tentou resgatar a carne na boca da mulher. As duas línguas se enlaçaram e se enfrentaram. Ele conseguiu pegar alguns pedacinhos que procurou carregar consigo em sua língua. Ao se desvencilhar ele sentiu comichão estranho que não sabia o que era. A mulher, mais esperta como sempre, entendeu tudo e quis repetir devolvendo a ele com sua boca e língua alguns outros pedacinhos de carne.

E então aquilo se transformou em uma prática diária. O homem passou a caçar ainda com mais disposição e adquiriram o hábito de trocarem comida pela boca e ao dormirem a noite os corpos já não precisavam do frio para permanecer agarrados. Ninguém ainda sabia, mas estava inventado o beijo... E por tabela, o apetite. ●

— Marco Antônio de Almeida

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