A luta antirracista (não) é uma problemática branca
O motivo de a luta antirracista ser (e não ser) uma problemática branca.
Por Pedro Moreira
Grada
Kilomba, escritora e professora da Universidade de Humboldt na Alemanha, em uma
entrevista concedida à Djamila Ribeiro, filósofa brasileira, disse: “As pessoas
brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas.” Elas se percebem
universais, como se fossem o centro do mundo. Elas, cientes ou não, vivem como sendo
a norma. Tudo que foge a si é considerado diferente. E pressupor que existe a diferença é o mesmo que dizer que e há os iguais. Mas quem são os iguais? Obviamente, as pessoas brancas que
se enxergam apenas como pessoas. O princípio é esse: “sou branca por isso sou
uma pessoa”. O ser branco, nesse sentido, se confunde com a noção construída
entorno do que é ser pessoa. Alguém validado, reconhecido como normal
(pertencente à norma). Em razão disso, quando alguém se refere a ele como “branco”,
ouvir reações de espanto ou desconforto é bastante comum.
Ademais,
não gosta de se entender como uma categoria nomeável. Nota-se, também, um
discurso pela negação do rótulo. Muito embora seja o rótulo das pessoas historicamente silenciadas. Ao mesmo tempo que ele delimita e,
portanto, cria restrições, o rótulo é uma bandeira polítco-ideológica. Sendo,
pois uma expressão da nossa voz. Voz essa que precisa aparecer para ser ouvida.
Os nossos rótulos – dispensáveis para os brancos – são veículos de
autoafirmação e manifestação política. O rótulo é político porque “o pessoal é
político”. Além do mais, a bandeira das pessoas negras é a própria pele, já
que, no Brasil, a cor é o que mede o grau de racismo que é sofrido.
quando um branco fala em igualdade, ele fala, na verdade, no apagamento da identidade negra, no seu silenciamento, na sua invisibilidade.
O mundo, para as pessoas brancas, é aprazível,
acolhedor. Por isso que, para elas, a universalidade é uma vivência, mas nunca uma concepção. Ora, elas são a norma, mas mal se apercebem das opressões que disso decorre. Os
brancos (re)produzem o discurso segundo o qual “todos somos iguais”. É uma
falácia. Porque nesse nós não estão
incluídas as pessoas negras e demais categorias. Esse nós é exclusão do que eles consideram ‘estranho’. Outra hipótese: quando
um branco fala em igualdade, ele fala, na verdade, no apagamento da identidade
negra, no seu silenciamento, na sua invisibilidade. Esse discurso vigora na
forma do mito da democracia racial. E traz diversas consequências para a vida
das pessoas negras. Um exemplo disso é a camuflagem discursiva da estrutura
racista mantida pela mídia e pelo poder.
As
pessoas brancas precisam se reconhecer enquanto uma categoria. As categorias
estão lado a lado, coexistindo sem hierarquia pressu. A hierarquia entre
elas é resultado de construção social. Uma rede complexa de signos e valorações
positivas e negativas acabam por definir o normal e o anormal. A norma é um
discurso. E, sendo um discurso, é variável, móvel. Portanto, a dominação das
pessoas brancas – e seus privilégios – não é natural, mas o resultado de
séculos de poder. A superioridade racial é um mito, pois não existem critérios
que a sustente. Ao se colocar como uma categoria particular, as pessoas brancas
já começam a perder privilégios e isenções. Passam, então, a ter que encarar o
fato de que precisam desfazer-se de comodidades. Por isso é mais fácil
reproduzir o pensamento pernicioso de que não existe racismo pois “todos somos
da espécie humana”. Mas se esquecem de que nem sempre, ao longo da História
recente, nós negros fomos considerados humanos.
as pessoas brancas colhem, hoje, os benefícios de seus antepassados, visto que ainda desfrutam de um status social privilegiado e hegemônico na sociedade.
A
constituição do sistema racista não foi uma invenção das pessoas negras, mas,
sim, das pessoas brancas. Logo, a responsabilidade da desmontagem (ou
desconstrução) desse sistema de opressão racial, recai sobre as pessoas
brancas. São elas que precisam desfazer os nós, as amarras que criaram. Mas,
alguém pode argumentar, “nenhuma pessoa branca hoje escravizou ninguém e não pode
ser culpada pelo racismo”. Essa ideia é duplamente equivocada: (a) ainda hoje
existem pessoas que são escravizadas (de várias etnias) – escravidão não é um passado remoto,
trata-se de uma realidade ainda contemporânea; (b) as pessoas brancas colhem, hoje,
os benefícios de seus antepassados, visto que ainda desfrutam de um status social
privilegiado e hegemônico na sociedade. Percebe-se isso porque, num país como o
Brasil, o fato de a maior parte da população ser constituída por pessoas pretas
e pardas não assegura uma devida proporcionalidade de pessoas pretas e pardas
em espaços de decisão e de autoridade. Espaços que ainda são de maioria branca,
como a mídia, as profissões supervalorizadas, os cargos políticos. Nunca tivemos
nenhuma presidência negra, por exemplo. A
realidade racial brasileira é escandalosa.
Os
brancos e negros têm heranças sociais distintas – que são ao mesmo tempo
econômica e histórica. Hoje, embora o Brasil seja majoritariamente negro, os
mais ricos são pessoas brancas. Os negros, pelo contrário, constituem a maioria
pobre do país. O que nos leva a pensar brevemente na história da escravidão,
porque ainda a escravidão é um
processo que tem efeito sobre nós. A nossa condição de negro marginalizado é um
vestígio do racismo ainda vigente.
O
sistema escravocrata durou mais ou menos 350 anos. A assinatura da Lei Áurea teve pouquíssima relevância na vida prática das
pessoas negras. Porque foram “empurradas” para as margens, para as bordas da
sociedade. Do “trabalho” escravo para o trabalho
assalariado (atividades desprestigiadas). De mãe de leite para
babá - a “mãe preta”. Assim, na vida de uma mulher negra
escravizada que possuía a função de ama de leite e, que depois da assinatura da
Lei Áurea, tenha começado a receber um ordenado, nada mudou de fato. Ela continua a ocupar a mesma
função social nas relações de trabalho.
É escandaloso e revoltante vivermos a mesma proporção de vida que na escravidão, na qual, apenas se tinha acesso a uma alimentação precária e a uma moradia ruim.
Façamos
um comparativo: durante a escravidão, as “contrapartidas” que as pessoas pretas
recebiam eram a alimentação e a moradia. Alimentação de baixo proveito nutricional e
moradia com condições indignas. No contexto brasileiro atual, o salário
mínimo de 2019 está em R$ 998, quando deveria ser, em média, R$ 4.052 – de acordo
com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos). O valor médio do aluguel de uma casa popular varia em torno
dos R$ 800. Uma cesta básica ficou em R$482 no mês de fevereiro de 2019, na
capital de São Paulo. É escandaloso e revoltante vivermos a mesma proporção de
vida que na escravidão, na qual, apenas se tinha acesso à uma alimentação
precária e uma moradia ruim. O que mudou: a exploração explícita foi substituída
por uma “ilusão abolicionista”. O salário brasileiro tão baixo é um vestígio do
racismo estrutural, pois a população, em sua maioria, é preta e parda –
herdeira social dos malefícios da escravidão.
O
título desse texto é propositalmente ambíguo. Se o sistema racista é obra das
pessoas brancas, não é verdade que elas são as protagonistas desse
processo. É importante, assim, delimitar fronteiras. Os brancos têm a
responsabilidade de reverter o racismo. Contudo, isso não significa (a) apenas deixar
de ofender pessoas negras com adjetivos historicamente racistas,
como são os casos de “macaco” e “mulata”; (b) usar um bottom com palavras de ordem na mochila; (c) usar hashtags com oo #blacklivesmatter. É
preciso ir além e esse movimento passa pela linguagem.
O racismo é sistêmico e a linguagem é sintoma
da estrutura racist. Porém, a linguagem é parte
constituinte dele. Já que é pela e na linguagem que categorizamos o mundo.
Abandonar as palavras consideradas racistas não é só um pequeno passo em
direção à destruição do sistema. Elas carregam valorações que machucam e ferem
as pessoas. Mas não devemos definir o racismo pela ofensa pessoal, pois assim,
se cria um desvio. Ou uma estratégia branca para parecer “menos” racista. Dessa
maneira, a fonte do problema não é tratada. Não basta deixar de ofender uma
pessoa negra – o que já deveria ser uma ética estabelecida – a luta
antirracista deve gerar práticas que visam a desestruturação do racismo como um
todo. Como se faz isso? Não temos todas as chaves da problemática. Nós, negras
e negros, não somos os forjadores dessas correntes.
Para os brancos a
luta contra o racismo é uma escolha. Para nós, é uma condenação. Condenação no
sentido de necessidade. Não temos a escolha de não sermos atingidos pela
opressão racista. Desde que nascemos somos afetados por ela. Crescemos
subjugados nesse esquema social. A luta antirracista é intuitiva para nós, comumente.
Para
ser menos racista, então, é preciso ter empatia. Os brancos não têm essa
empatia estimulada, pois vivem num mundo feito na medida para suas necessidades.
Nascem, crescem, morrem – sem se dar conta de que a vida que levam é fruto da
opressão da comunidade negra. É necessário desenvolver essa empatia.
Colocar-se no lugar do negro para compreender aproximadamente sua situação
existencial. Entretanto, ter empatia pela causa dos negros não pode significar
roubar o lugar do negro. É de bom gosto toda ajuda para disseminar a luta
contra o racismo. Mas, por exemplo, um pesquisador, homem, branco, cisgênero,
heterossexual, que estuda as questões negras pode cair no furto do protagonismo
da causa. Muitas vezes, por não ter passado pelo processo empatizante.
Numa segunda-feira de manhã, com mal humor e sono, somos “obrigados” a responder a situações de racismo. Estamos na linha de combate todo o tempo.
Como
Djamila Ribeiro escreveu: “não quero mais ser o objeto de estudo, e sim o
sujeito da pesquisa”, nós, negras e negros, queremos espaço e voz para trazer
nossas questões à tona. A luta é uma necessidade, resistimos em espaços
considerados cotidianos, como a sala de aula, o local de trabalho, a
universidade, o supermercado. Em todo momento estamos, de fato, resistindo e,
além de resistir, atuando em prol da nossa verdadeira liberdade como sujeitos
plenos na sociedade. Pois ainda somos tratados como cidadãos de segunda classe. Numa
segunda-feira de manhã, com mal humor e sono, somos “obrigados” a responder a
situações de racismo. Estamos na linha de combate todo o tempo.
Como
a diminuição do racismo passa pela questão de empatia, carece de responder à
uma questão muito recorrente que revela mais e mais o racismo no discurso. “Por
que toda pessoa negra é barraqueira quando trata do racismo?”. Primeiro que,
como somos tratados como os diferentes e um outro
em relação ao centro, que são as pessoas brancas, sofremos de uma
generalização. O que uma pessoa negra faz é sempre atribuído à toda a
comunidade. Mas o que uma pessoa branca faz é tomado como um fato individual e
isolado. Se uma pessoa negra mata, todos os negros são associados a esse ato,
mas o contrário não acontece.
É
necessário refletir sobre o que significa ser violento. Existe o mito da pessoa
negra violenta. Quando um ativista negro diz em alto e bom som que alguém é
racista, ele não está ofendendo-a pessoalmente; ele está somente denunciando um
sistema que autoriza a pessoa branca a ser racista. Isso é violência? Por um
acaso o racismo e a escravidão não são violências piores? Um atentado contra a
dignidade humana? Perpetuar o discurso de que os ativistas negros são
extremistas e violentos, não contribui com a causa. Porque não se deve medir a
reação do oprimido pela violência do opressor. Tal mito do ativista negro “barraqueiro é sintoma de como as pessoas brancas classificam as pessoas negras como
causadoras da violência no país. O que é uma inverdade.
o sistema racista pós Lei Áurea forçou às margens as comunidades negras. É dessa privação de cidadania que advém boa parte da criminalidade no país.
A
maior parte da população carcerária é negra, jovem e com baixa escolaridade,
segundo o Ministério da Justiça no Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (Infopen), com dados de 2016. Por essa razão, muitos discursos
racistas associam a comunidade negra ao crime. Não é por acaso que muitos atos
racistas acontecem por conta dessa personificação do bandido como sendo preto e
“favelado”. Outro estereótipo racista e sem fundamento. Para uma pessoa branca
talvez não importa se questionar de onde vem essa realidade da maioria negra
nos presídios. Para muitas delas, é mais fácil crer que pessoas negras são
violentas e tendem ao crime naturalmente. O que é um absurdo e uma
desonestidade intelectual, se tratatando de uma visão racista cientificamente derrotada.
O que está por trás dos dados do Infopen? A seguinte
relação: o sistema racista pós Lei Áurea forçou às margens as comunidades
negras. É dessa privação de cidadania que advém boa parte da criminalidade no
país. As pessoas brancas se debatem como acabar com o crime, mas não consideram
os altos índices de criminalidade como consequência das práticas históricas de exploração,
racismo e escravatura.
A
fim de iniciar um processo pessoal de desconstrução
do racismo e de “descolonização” do pensamento, é preciso repensar a
história e a sociedade. A pessoa branca precisa ocupar um lugar de escuta do
outro. Só assim poderão ser verdadeiramente empáticas e lutar contra o racismo.
Pois, como escreveu Angela Davis: “Não basta não ser racista, é preciso ser
antirracista”. Se colocar ao lado do negro – e não à frente –, para, em
conjunto, construir possibilidades de uma sociedade mais justa. A luta é (e não
é) do branco. A responsabilidade é do branco, mas o protagonismo não. Os
protagonistas do autosequestro somos nós, as pessoas negras. Esse protagonismo
nos leva a roubarmos para nós mesmos os próprios corpos, as nossas próprias vidas.
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