QUANDO PERDER AS CHAVES É CRESCER

Perdendo a única cópia da chave de casa quando se mora sozinho.


Pedro Moreira

A primeira vez que me senti completamente desamparado na vida foi quando perdi a única cópia da chave da casa onde eu morava. Eu tinha me mudado para uma cidade do interior de São Paulo para trabalhar e estudar. Fui dividir com um amigo. Ele alugou um cômodo numa região afastada do centro porque custava pouco, mas as condições eram péssimas: baratas apareciam voando no meio da madrugada, por exemplo. Fogão, geladeira, pia, televisão e cama tudo num ambiente só. mal tinha espaço para nós dois.

Para sobreviver, arranjei, por milagre, um emprego numa farmácia. Isso iria sustentar os meus estudos. Começava, assim, a trabalhar de dia e a estudar história à noite. Eu sei. Nada a ver com nada. Mas, veja bem, uma senhora que trabalhava nessa farmácia era professora de Educação Física. Então estava valendo. Conheci pessoas incríveis nesse lugar. Dava muitas risadas com as amizades que fiz em poucos dias. Eles tiveram muita paciência comigo. Agradeço-os muito por isso.  Não foi fácil adestrar um rapaz que nunca tinha trabalhado na vida, recém saído de um seminário católico. Tudo me assustava e eu desconfiava de tudo. Era uma nova fase: o começo da vida adulta. Mas não é disso que eu queria falar.

Como meu amigo viajava todo final de semana para a cidade vizinha, onde seus pais moravam, eu ficava sozinho. Era um terror. Nunca disse para ele, mas eu tremia só de saber que estava chegando a sexta-feira. 

Lá estava eu morando naquele lugar. Várias casinhas enfileiradas, dando de cara para um muro sem reboco. O quintal era compartilhado com  pessoas que gostavam muito de brigar. Um esporte bastante praticado ali. Embora eu não seja uma pessoa das mais pacíficas, eles me venciam. Nunca saiu tiro. Nem risca faca. Mas os gritos acordavam com as galinhas e se esquecia de dormir com elas. Não julgo. Viver naquelas condições, com filho pequeno, não deve fácil. Recordo de um casal bastante jovem, provavelmente da mesma idade. Acho que estavam começando a vida assim como eu.

Como meu amigo viajava todo final de semana para a cidade vizinha, onde seus pais moravam, eu ficava sozinho. Era um terror. Nunca disse para ele, mas eu tremia só de saber que estava chegando a sexta-feira. Claro, eu tinha um privilégio. Quinzenalmente, meu pai, um santo homem, vinha me levar de carro para casa. Era reconfortante comer a comida da minha mãe e dormir sem medo de baratas.

Ao chegar à porta de vidro, não encontrei a chave no meu bolso. Vasculehi cada parte da calça e nada. Sabe a sensação de ter feito uma merda tão grande que mãe nenhuma poderia consertar? 

Houve um final de semana, porém, que eu fiquei sozinho pela primeira vez. Hoje nem consigo imaginar. Sem internet, o tédio reinava. Apenas tinha uma televisão que só pegava o canal regional. Infelizmente, a luz não era suficiente para ler, o que eu só podia (mais ou menos) fazer durante o dia; a casa não tinha janela. A porta servia como entrada de pessoas, de baratas, de ar e de luz. Porém, eu não gostava de ficar com a porta aberta. Ela dava para um corredor movimentadissimo pelos moradores daquele peculiar condomínio.

No primeiro domingo sozinho, resolvi passear pela cidade. Fui conhecer o centro. Eu era enfim um adulto vivendo por si mesmo. O futuro todo pela frente e uma cidade promissora me acolhendo. Terrível engano. Nem restaurante nem supermercado abria ali, aparentemente. Cheguei na praça central depois de descer a ladeira onde eum morava. Na praça, apenas havia a igreja matriz e uns quiosques de lanches pouco frequentados. Comprei um x-salada e um refrigerante de laranja, combinação perfeita. Como estivesse quase completamente vazia, resolvi voltar caminhando para a casa. Ao chegar à porta, não encontrei a chave no meu bolso. Vasculehi cada parte da calça e nada. O desespero foi tão grande que eu poderia ter infartado. A sensação de ter feito uma merda tão grande que mãe nenhuma poderia consertar. Minha mãe (ou meu pai), morando há mais de 100 quilômetros de distância, não poderia fazer nada às onze da noite de domingo.

 Não sei como mas cheguei, pela parca descrição de meu amigo, numa rua escura. Me deparei com uma casa amarela, a única assim como tinha dito ele, com muitas grades no portão.

Não pensei duas vezes. A coisa adulta a se fazer era manter a calma e rememorar cada passo que eu tinha dado desde que saí de casa. Me lembrava de ter trancado a porta, colocado a chave no bolso direito. Depois disso, não me dei conta que tinha uma chave. Andei todo o caminho de volta, até a praça. Demorei quanto tempo até perceber que não encontraria a maldita chave?

Lembrei, então, com muito esforço, que meu amigo disse que o dono daquele condomínio morava há algumas ruas dali, no mesmo bairro. Me explicou por alto. Nunca imaginei que precisaria saber disso. Ou que isso seria essencial para a minha sobrevivência na vida adulta incipiente. Fui em busca desse senhor e de sua casa, sem ao menos saber seu nome.

Tateei a memória e as ruas, dobrando cada esquina invocando todo santo que eu pudesse saber. Não sei explicar, mas cheguei a uma rua escura. Vi uma casa amarela, a única assim como tinha dito ele, com muitas grades no portão. Os moradores pareciam estar acordados. Bati muitas palmas até que uma senhora me atendeu. Ela não me conhecia, óbvio. Tentei explicar toda a situação, mas nada fazia sentido e eu parecia desesperadamente suspeito. Depois de muitos "hã?" da senhora,  o dono da casa foi chamado. "Nunca vi mais gordo", disse ele para a esposa ao me ver. Não era por menos, meu amigo havia tratado de todos os detalhes do aluguel ele mesmo.

Ele foi buscar uma caixa, onde havia toda sorte de chaves: grandes, pequenas, com chveiro, sem chaveiro. Imaginei comigo: quantas casas de aluguel ele tem?

"Como vou saber que você é quem você tá dizendo que é?", repetia o senhor. Nesse ponto, eu estava quase desmaiando. Imaginei que dormiria na rua. Fantasiei um cenário pior que o outro em que eu perdia o emprego. Depois de muita explicação de quem eu era (como se faz isso?) e do que tinha acontecido, o senhor resolveu me ajudar.  Ele estava dentro das grades de sua casa. Eu na rua, literalmente. Ele foi bastante amigável e me ofereceu um colchonete para passar a noite, na varanda de sua casa. Do lado de fora, claro. Não poderia aceitar a piedade cristã dele sem antes tentar resolver a situação, como um adulto faria.

Insisti que verificasse e ele buscar buscar uma caixa, onde havia toda sorte de chaves: grandes, pequenas, com chveiro, sem chaveiro. Imaginei comigo: quantas casas de aluguel ele tem? Bem que ele poderia ter me dar umazinha. Me entrgou, enfim,  um molho de chaves, sem nunca ter me visto na vida. Isso que é que ter fé nas pessoas! No interior isso foi possível, milagrosamente. A que santo ou santa devo esse socorro?

Cheguei de volta a casa e fui surpreendido que nenhum abria a pora. Fui testanto uma chave de cada vez novamente. "Se não me falha a memória eu não tenho cópia extra não", ecoava em minha cabeça o que o proprietário havia dito. Tremendo, com o coração disparado, consegui entrar na casa finalmente. Acho que a porta acabou cedendo aos meus empurrões e socos. A não era mesmo muito resistente. Nessa noite, era eu que estava fazendo confusão no condomínio. Amaldiçoei até a quinta geração de todos os chaveiros do mundo. Que culpa tinha eles? Nunca senti tanto alívio de me deparar com baratas andando livremente pelo chão. Eram as minhas visitantes. Era a minha casa.

Alguns dias depois do ocorrido, meu amigo e eu começamos a procurar outra casa para alugar. Uma que fosse mais próxima da faculdade onde estudávamos. Mas isso é papo para outra hora. Acho que agora entendo porque as pessoas mais velhas escondiam a chave da porta num vaso de flor no quintal Mais uma coisa que aprendi. Ser adulto é não ter o direito de perder as coisas. Muito menos a chave de casa.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas