SAUDADE




SAUDADE

Sonhei ontem que estava
com um pé em cada ponta
de uma ponte levadiça.

Não posso dizer agora
se isso é uma cena de filme
ou um delírio.

Cada vez mais a ponte subia e eu
prestes a desabar. Olhei no vão das
minhas pernas um precipício
abrindo a boca com fome.

Tenho medo de altura,
devo confessar.

Se eu não tivesse acordado
o que mais teria acontecido?

Gosto de — ou melhor odeio —
pensar que estou
ali ainda naquela ponte,
com as pernas quase arrancadas,
o coração disparado
e o medo do que vem adiante.

Hoje li no jornal
que João Gilberto
morreu aos 88 anos de idade.
O articulista —  porque já não
se vê um cronista por aí
dando sopa — disse
que com o João  morreu
a utopia de um país.

O que morre quando morre
um cantor? Seu paí inteiro?

Se tudo é mesmo cíclico,
Estamos cada vez mais perto
dos anos 1950. No pior e no melhor.
Ameaças de golpe, militares,
uma extrema-direita burra,
e um meio artístico em polvorosa.

Há algumas semanas,
dois filmes brasileiros foram premiados
em Cannes: “Bacurau” e “A vida invisível
de Eurídice Gusmão”.

“O cinema brasileiro
vive
sua melhor fase”,
disse um comentarista
— não, crítico não.

O rapper baiano
Baco Exu do Blues também
ganhou um prêmio
pelo videoclipe de Blusman.

Eu sinto muito, eu disse para mim mesmo.
Quis saber: desde quando o Brasil
precisa da aprovação europeia?

“Sempre — ouço — “desde que
ele foi modelado por mão preta
a mando dos portugueses.” 

Só vale o que toca 
as mãos europeias.

Distopia, utopia, nação;
palavras grandes demais
para caber tudo numa bacia só.

Sonhei ontem que estava
com um pé em cada ponta
de uma ponte levadiça.

Não posso dizer agora
se eu caí — mas o frio
na barriga que senti por último...
era o vento da queda?

Procurei num site de buscas
o que significa sonhar com pontes.
Tudo depende do ponto de vista, aprendi.
Se está sobre a ponte, debaixo dela,
passando por perto ou simplesmente
se você está vendo a ponte.

Mais medo eu tenho de pontes agora.
E de altura também.

O articulista reclamando
da morte de um projeto de país,
dono de si mesmo, parece saudosismo.
Sempre vi com desconfiança quem
dissesse algo assim.

Cadê o João para sustentar
na voz  a ponta de cá e a ponta de lá
da ponte levadiça do meu  sonho?

Talvez seja apenas saudade.
Chega de saudade?

A saudade (do futuro)
é um sintoma que se
vive em português.


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