ODEIO SUPORTE PARA COPOS, DE NATHALIA AFFEL

 


Leia um texto em prosa de Nathalia Affel.

Odeio suporte para copos


NATHALIA AFFEL


Carlos deu o primeiro passo. Pronto. Agora não tinha mais volta. O pedido foi feito e desfazê-lo ficaria muito feio para o seu lado. Não que ele não quisesse, mas logo após de dizer aquelas palavras um terror e desespero se apoderou dele. E agora? Qual seria o próximo passo? Ajoelhar e fazer a boca mexer em um som de meia dúzia de palavras foi fácil, até demais. Agora, colocar em prática a loucura que estava prestes a iniciar era um outro negócio. Ela vai dizer sim. Sim, caramba, sim. E ainda complementar "Vou começar os preparativos amanhã!". Ele conhecia a namorada, sabia o quanto ela ficava empolgada com esse tipo de coisa e eles já estavam juntos há sete anos. Mas, também, ela pode dizer qualquer outra coisa, "Vou pensar no caso", "Eu ainda não tenho certeza", "Estamos indo rápido demais", "Não" ou simplesmente "Carlos, não seja um completo idiota". Mas, agora a placa de imbecil já estava colada em sua testa. Ele tinha certeza de que em breve estaria noivo.

E para Carlos, nesse frenesi, não só a sua vida de solteiro estava terminada como a sua vida em geral estava destruída. Nesse um minuto de pensamento que se seguiu entre a sua proposta e a resposta da namorada, que no momento estava com uma cara de espanto que Carlos teria achado preocupante se não estivesse tendo um surto interior. Todas as regalias que seriam cortadas começaram a passar em sua cabeça como um filme. Cervejinhas depois do trabalho, pizza pelo menos em quatro jantares por semana, meias na gaveta de cuecas, andar nu pela casa cantando Guns n’ Roses com uma guitarra imaginária (não que ele fizesse isso, é claro). Tudo estaria acabado. Como ela iria entender que ficar em frente ao espelho imitando o Hulk ou saudando o bom e velho amigo ali embaixo que muitas vezes lhe trouxe extremas alegrias, era perfeitamente normal?

Ar, ele precisava de ar. Mas não dava para levantar dali enquanto não tivesse uma resposta. E por que ela estava demorando tanto? Ou ela realmente não estava. E aquela velha história de que você vê toda a sua vida em um segundo antes de morrer é totalmente verdadeira. Carlos então começou a pensar nas desculpas e nas explicações que daria caso ela dissesse sim. Como iria deixar claro que aquilo foi um erro, que o problema não era ela, mas a vida com ela dali por diante. Como iria desfazer o que havia acabado de fazer sem parecer um completo lunático ou um canalha de quinta?

Respirou fundo e levantou. Mesmo porque àquela altura seus joelhos já estavam pedindo socorro. E quando abriu a boca para falar seja lá o que fosse, pois, no fim resolveu fazer tudo no improviso, ela respondeu “Não”. Ela disse não. Passaram-se vários segundos de choque enquanto os dois se olhavam e o resto do restaurante. Esse que ele tinha escolhido com tanto carinho e dor no bolso. Ele também esperava uma reação após aquela negação inesperada. Finalmente, ele não teria de arranjar nenhuma desculpa, inventar nenhuma explicação ou mentira. Ele não precisaria agir como um completo idiota que acaba de pedir a namorada em noivado e cinco segundos depois muda de ideia como se um pedaço de pau tivesse caído na sua cabeça e o trazido para a realidade. Uma sensação estranha começou a tomar conta de Carlos. Ele estava livre. Livre para ver Duro de Matar até enjoar da cara do Bruce Willis. E quem é que enjoa da cara do Bruce Willis? Livre para não combinar as meias com as cuecas e ignorar os suportes de copo. E daí que a madeira vai marcar? Livre para fumar dentro do carro. Sem ter que deixar as janelas abertas em um frio de matar. Ou só para o cheiro não impregnar no estofado. E ainda por cima tendo que jogar as cinzas para fora para ela não descobrir esse seu mais novo e fedido hábito. Livre para jogar videogame comendo pipoca como um garoto de dez anos durante o domingo sem ter que ouvir “CUIDADO PRA NÃO DERRUBAR NO SOFÁ, MANDEI LAVAR AS ALMOFADAS ONTEM!”. 

E com essa sensação estranha tomando conta do corpo de Carlos ele finalmente teve coragem de dizer: “Não? Como não? Eu te trago em um restaurante desses... Te compro um anel que custa mais do que a minha casa. Tomo a decisão de passar a minha vida do seu lado. E tudo o que eu recebo em troca é um mísero NÃO? Como você pode fazer isso comigo, Ivete?”. Carlos estava tomado por uma raiva um tanto quanto descontrolada, respirando tão fundo que gotinhas líquidas saíam de seu nariz vez ou outra. Apertava o encosto da cadeira com tanta força que se fosse realmente o Hulk já tinha transformado aquilo em pó. Até que Ivete resolveu se pronunciar: “Eu não estou preparada para isso, eu acho que estamos indo rápido demais, eu até posso pensar no caso, mas não sei. Não estou preparada para abrir mão da minha liberdade, não quero que minhas noites vendo novela com um pote de sorvete sejam substituídas por partidas de futebol e gritos frenéticos. Quero lavar as minhas calcinhas no banho e deixá-las penduradas em qualquer lugar. Não sei cozinhar e prefiro comer pizza quatro noites por semana do que me dar ao trabalho de ir até a cozinha. Não quero ter que bancar a esposa todas as noites esperando você voltar do trabalho enquanto poderia estar em um happy hour com as amigas enchendo a minha cara de Cosmopolitan e falando mal das assistentes. Não, Carlos, não. As almofadas vão ficar sujas de sorvete a cada vez que eu resolver passar o domingo jogando videogame e assistindo Duro de Matar, porque quem é que resiste ao Bruce Willis? Não estou pronta para ser uma boa esposa. E acho que nunca estarei. Me desculpe”.

Tudo o que ele conseguiu fazer foi caminhar até o barman e pedir uma dose de qualquer coisa que trouxesse um pouco de realidade para o que acabou de acontecer. Ele foi rejeitado, abandonado, negado em público pela mulher que mais amou na vida. E era isso que ele repetia para o barman a cada dose a mais que ele trazia de alguma coisa que ele ainda não sabia o que era. E em algum momento entre estar sóbrio e em desespero por ter feito um pedido de casamento e estar bêbado cheio de desgosto e frustração, Ivete foi embora dizendo “Carlos, não seja um completo idiota. Aqui está o dinheiro para o táxi, você não está em condições de dirigir. Eu preciso de um cigarro”. Ela diz isso segurando-o pela face, e cruza o restaurante com todos os olhares a seguindo. Ela para na mesa em que estavam para depositar a taça de champanhe que vinha segurando desde então, deixando uma marca do anel do fundo da taça na madeira, “Odeio suporte para copos”.  

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