UM DEDO DE PROSA COM O POETA CASÉ LONTRA MARQUES (1985)

Casé Lontra Marques (Foto: divulgação)
Casé Lontra Marques (Foto: divulgação)


Os poemas do poeta Casé Lontra Marques são como pequenos espantos filosóficos, como se nos deparássemos com o nascimento de uma reflexão. Meditação, talvez. Aqui você pode conferir um breve perfil do poeta assim como ler uma entrevista com ele e ler três poemas que o Casé enviou para a revista IdÊ.


POR PEDRO MOREIRA


Casé Lontra Marques (1985—) nasceu em Volta Redonda (RJ). Vive atualmente em Vitória (ES), onde cresceu. É poeta, com formação em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ministra oficinas de análise literária. Apesar de jovem, a bibliografia do poeta já possui uma lista considerável de livros, tendo ele uma produção prolífera.

Do autor: Mares inacabados, Campo de ampliação, A densidade do céu sobre a demolição, Quando apenas se aproximam os rumores de chuva, Saber o sol do esquecimento, Movo as mãos queimadas sob a água, Indícios do dia, Enquanto perder for habitar com exatidão, O que se cala não nos cura, A língua entre os lapsos, O som das coisas se descolando e Desde o medo já é tarde.

Fiquei conhecendo Casé Lontra Marques ao saber do lançamento de seu último livro, Desde o medo já é tarde (2018), pela lendária 7Letras. Logo de cara o título me chamou a atenção. Foi como ler sem ter lido e terminar com diversos títulos na cabeça. Depois disso, procurei por Casé nas redes sociais, onde ele mantém uma linha do tempo com as novidades, as oficinas, as colaborações em revistas literárias digitais — prática quase obrigatória para jovens poetas brasileiros.

A poesia do Casé Lontra Marques intriga porque ele escreve misturando o que se tem de melhor na tradição literária com um discurso contemporâneo. De cara, podemos pensar que se tratam de poemas duros, com um ritmo seco, quebradiço — uma a atmosfera cabralina? — mas, (alguns imporiam esse mas), se olharmos com a sensibilidade que eles exigem, encontramos música, além de uma plasticidade encantadora. Ele, de fato, parece trabalhar os poemas como os escultores fazem com a pedra: tirando leita da rocha.

Ler Casé Lontra Marques é visitar um museu de arte; é se defrontar com imagens como essa: “Enquanto o sol amassa/ a moleira/ dos prédios” ou “um sol/ (imoderado) se move/ pela medula”. Ele tece, com uma paleta de cores bem trabalhada, uma paisagem poética difícil de olhar uma única vez. Ele nos convida à contemplação. Ou, melhor dizendo, o poeta nos convida a uma afetividade do que é escorregadio e escuro. O olhar — demorado — sobre as coisas que moram entre o eu e o outro. Mesmo porque os “afetos/ são fendas/ famintas”.

Da dureza dos nossos dias — e do nosso tempo nem tão líquido assim, cheio de tempestivas atividades políticas e culturais —, Casé Lontra Marques retira um material bruto que ele lapida com os olhos. O poeta é mesmo um artista visual. Seus versos são traços. Ler sua poesia é dançar com os olhos na página e perscrutar o que está escondido aos ouvidos. É desafiador, mas extremamente recompensador. Ele corrói os contornos dos versos, mas, em troca, devolve uma fisionomia de um mundo que pulsa.


Uma conversa com Casé Lontra Marques 


Como foi que a poesia te fisgou? Quando? 

Foi na adolescência, quando a leitura se tornou, de fato, um vetor de desejo. Folheando o livro didático, encontrei um poema impactante (“Cavador do Infinito”) de Cruz e Sousa. Bateu na hora. Então corri para procurar algum volume do autor na biblioteca da escola; eu estudava, felizmente, num instituo federal com boa estrutura. E pude me esbaldar.


Quais são as suas leituras favoritas? O que você tem lido ultimamente?

Desde que me tornei leitor (não desde que fui alfabetizado), três campos de exploração da linguagem — que definição empregar? — me atraem especialmente: literatura, filosofia e psicanálise. De forma que quase tudo em que me demoro tem a ver com isso. Mas às vezes passeio por outros territórios, para arejar o corpo e também, claro, para cultivar a curiosidade. 


Numa entrevista, o poeta Ricardo Domeneck disse que, no Brasil, costumamos desperdiçar os nossos poetas contemporâneos. Você acredita que os/as poetas de hoje tem tido mais ou menos visibilidade?  

Questão intrincada. Acredito que hoje seja menos complicado tornar público um texto: os meios estão mais à mão, eu diria. Até porque a tecnologia digital oferta recursos amplos. Contudo, espaços de discussão (e legitimação) do acontecimento literário como que escassearam — considerando que, até décadas atrás, existia maior debate em jornais, por exemplo. De modo geral, a visibilidade continua um problema. Publicar é ainda um desafio; menor do que antes, verdade — mas ainda um desafio. E fazer circular o que foi publicado parece ser pior; esse seria, em linhas gerais, o grande desafio. Apesar dos ataques tanto contra o saber quanto contra a sensibilidade, tem ocorrido algo alentador em nossos dias: a emergência, após milênios de soterramento, de vozes múltiplas vinculadas a minorias políticas.


Ao site Como eu escrevo, você disse que seus poemas são “cuidadosamente inacabados”. Tenho a intuição de que você é daqueles poetas que trabalham bastante na feitura de um poema. Isso procede?

Sim, procede. Gosto de deixar os poemas no corpo, girando e girando — mas não sei se levo isso à exaustão. Meu guia (insondável, mais que invisível): o desejo. Até porque escrever compõe o meu esforço de estar na vida; mesmo com toda a dor, a vida ainda me instiga. Ela, a vida, semeia fomes incomensuráveis, entre inúmeras fendas. Incomoda? Claro que incomoda. No entanto, a vontade (maior que o medo); a vontade — um amuleto — é voraz.

 

Como você vivencia essa ‘vida literária’ que dizem estar borbulhando no Brasil de hoje? 

Com um entusiasmo moderado, que desdobrarei brevemente. Por que entusiasmo? Por causa da proliferação de poéticas, em confluência com uma resposta anterior; diversas vertentes de linguagem agora chegam melhor a quem busca — ou antes: a quem se abre, a quem se expõe. E por que moderado? Por causa de uma percepção nada excepcional: a discussão ainda precisa ganhar fôlego.


Você tem contribuído com diversas revistas literárias como Escamandro, Caliban, 7faces, Enfermaria 6, Poesia Primata, entre outras. Qual é a importância desses espaços para quem lê e/ou escreve poesia hoje?

Espaços assim são fundamentais tanto para quem lê quanto para quem escreve, pois propiciam a disseminação de textos imprevistos, com uma frequência, em alguns casos, quase que diária. É um respiro, sem dúvida; um respiro em meio às atrocidades cotidianas. Que planejam — cada uma a seu modo — erradicar a interrogação. Na contracorrente da asfixia (social, política...), as publicações citadas — e outras mais — como que expandem os pulmões, além de desobstruírem as veias. Adensando a insubmissão.


No seu mais recente livro (espero que não o último), Desde o medo já é tarde (2018), encontram-se versos como esses: “a última hora/ é hora nenhuma”, “A palavra é parte/ do que um corpo será”. Parece um esforço de definição, não no sentido de dar fim, mas, no de pintar com precisão a inexatidão de nossos contornos e limites. Qual é a importância do verbo ser (ou, em última instância, do existencial) para a sua poesia?

Fiquei contente com a observação. Obrigado pelo cuidado da leitura — tão atenta, tão lúcida. Indo ao ponto: difícil dimensionar a importância de tal questão para o que escrevo. De alguma maneira, a inquietação com a existência subsiste em cada frase (um infrassom, talvez?). Essa inquietação, nada distante, integra a matéria dos dias, pelo menos dos meus dias. E sei que permanecerá sem qualquer resolução. O que festejo, aliás. Pois procuro me ocupar com o percurso: passo a passo. Ou sílaba a sílaba.


Fernando Andrade, ao te entrevistar para a Literatura&Fechadura, escreveu que “A linguagem que você usa nunca atravessa o próprio território do que você propõe a falar”. Você busca o misterioso, Casé? O não-dito?

A poesia que mais me movimenta é aquela atraída pela concretude do inominável — algo (um lugar? uma experiência?) que, apesar de escapar a todo instante, não foge à crueza do cotidiano. Tem lá a sua carne. Tanto que atropela os sentidos (sensoriais, semânticos). Um inominável que pesa, portanto; que faz sombra. E que — ao mesmo tempo — abre brechas. Penso que o amor não caminha longe daí, assim como a ansiedade. E seus tentáculos.


No lançamento que você fez na Tapera Taperá, você disse que Desde o medo já é tarde (7Letras, 2018) surgiu a partir do tecer de um “luto de Brasil”. Casé, em que medida o político atravessa a sua escrita?

Por não vivenciar a linguagem como uma manifestação alheia a regimes de partilha do poder, o que escrevo (mesmo em seus lapsos) tende a explorar uma porosidade eminentemente política. Algo que me dedico a fazer proliferar — com uma potência se possível epidêmica. Nutrindo um perene estado de rebelião.


Tem sido bastante comum as/os poetas de hoje performarem seus textos ao vivo. Você costuma fazer isso? Qual é a sua relação com essa prática?

Então, acho uma prática magnífica. Que contribui — belamente — para a polinização da literatura. Contudo, o meu tesão, de verdade, é a escrita, sabe? A palavra como fenômeno gráfico: na página, na tela. No muro... Porém, acontece de eu ler algum poema meu quando me pedem (durante uma palestra, por exemplo).


Você escreveu o seguinte: “Dúvidas nos aproximam/ das palavras”. Quais são as suas dúvidas, Casé?

Acho que a resposta não deveria ser uma lista, até porque ela jamais conheceria fim. E talvez eu sequer soubesse por onde começar. Pois minhas dúvidas — antes de numerosas — são criaturas vivas, com uma premência virótica: mudam constantemente. Seja de forma seja de ambiente.


Versos seus: “língua/ é todo lugar (inclusive/ lacuna) onde não/ desmorono”. As palavras são de algum modo sustentação para a sua existência, Casé? Um combustível, talvez?

Sustentação, combustível — ótimas imagens. Com as quais concordo. E acrescento: as palavras (além de alimentarem) também ameaçam, agridem. De um modo ou de outro, melhor, de um modo e de outro, elas dão consistência à vida, cedendo acesso, inclusive, ao inorgânico.


Você encara a poesia como resistência política?

Encaro, sim. Como resistência. E — antes disso — como propulsão: de possibilidades. Mas também de questionamentos. Que não cessam (nem se esgotam).


Na sua poética, o que poderia significar (ou não) “gozar no/ mínimo em mais/ de um mundo”? E “Um gozo tem muitos gumes”? O desejo/prazer é uma experiência plurivalente?

Total. Experiência plurivalente, polimórfica — que, apesar de palpável, foge à apreensão. Estimulando um movimento contínuo (e meticuloso) de aproximação.


Você naturalmente tem amizade e contato com outras/os poetas contemporâneas/os. Poderia citar alguém?

Grande parte das minhas escolhas de vida tem como eixo a literatura, a convivência com a literatura. O que espontaneamente me permite estabelecer contato com outras pessoas também fascinadas por essa mesma paixão — ou, quem sabe, essa mesma necessidade. Algumas escrevem (poesia, ficção, crítica); outras apenas fruem. Em ambos os casos, o diálogo é prolífico. E certamente me aumenta. Pela extensão da gratidão, os vários nomes que eu por acaso elencasse não dariam conta de abranger sequer uma pequena fração: a memória, contudo, guarda tudo (ou quase tudo) na pele, sob camadas e camadas e camadas de palavras, afetos, sensações...


Você dá oficinas de leitura de poemas. Casé, poema é coisa que se explique? O que o leitor ganha em termos de qualidade de recepção ao participar de uma oficina dessas? Elas ajudam a quem quer escrever melhor?

As oficinas de análise literária que conduzo não objetivam a explicação. A intenção é debater, conjuntamente, um texto, em geral um poema, com base numa prática de leitura o mais possível minuciosa — que, sob certo prisma, poderia ser qualificada, também, como amorosa. Para mim, todas as edições foram realmente gratificantes: percepções, reflexões e intuições de fato inesperadas ganharam corpo (talvez até, por sua vez, ramificações). Pelo que vi, pelo que senti e, claro, pelo que ouvi, digo, com vivo prazer, que quem participou colheu bons frutos. Uma pessoa que escreve — creio — tem muito a se beneficiar com uma ação assim; o mergulho nas águas às vezes calmas, às vezes tumultuadas da linguagem fertilizam os desertos que carregamos atrás dos olhos.


Você teria algum/a poeta viva/o para indicar? Alguém que tenha sido negligenciada/o pelo público, quem sabe?

As mídias digitais — com suas esquinas, com suas encruzilhadas tão profusas — como que explicitam um dado antes suposto por não pouca gente: há mais poéticas pulsando no país (e no mundo, por que não?) do que se pode cartografar.


A poeta Ana Elisa Ribeiro, em texto sobre você para o Letras, escreveu que é “Difícil escolher um ou dois textos [do Desde o medo já é tarde] porque, justamente, os poemas continuam meio gêmeos, da mesma safra, um jorro talvez.” Essa unicidade (formal, temática) foi proposital?

Em parte, foi proposital. Reformulando, talvez não tenha sido exatamente proposital — mas eu, ao longo do processo de feitura do livro, notei (sem repelir) isso que foi chamado de unicidade. Os poemas reunidos nesse volume foram escritos mesmo num único período: alguns meses, se tanto. Inclusive, pouco alterei, depois, a ordem dos textos. Quis deixar o fluxo final mais condizente com o fôlego que o fundou.


Poderia citar um verso seu que você acredita que resumiria a poética que foi construída em seu último livro?

Olha, Pedro: espero jamais encontrar no que escrevo um verso assim — venho repudiando o resumo em privilégio da proliferação.


Três poemas de Casé Lontra Marques


Quem se dedica a divergir


Quem se dedica a divergir

zela pelo

que prevalece alheio aos olhos, aqui

onde

o assoalho é pouco

sólido (para não dizer

inexistente);

o diálogo — sem medo do parto —

costuma

deixar danos: colapsos

(ou códigos)

necessários ao sustento —

momentâneo

— da subversão, que devora

os

ovos do desânimo

(enquanto a espinha de

repente

repele a apatia).


***


Aprenderemos a descansar os olhos na água


Aprenderemos a descansar os olhos na água

(entre novas fissuras).

A calma — apesar de tudo há calma — quase

abranda

o calor. Pedras

prensadas contra

o brilho

daquela manhã ali, respirando

dentro

de alguma fala. O dia é obrigado a se abrir:

aprofundamos

sua fome.

Com as pupilas

eletrocutadas.


***


O que some da fala logo sobe ao corpo


O que some da fala logo sobe ao corpo

(por que não escondemos, por que não escolhemos

nossos

escombros?). O que some da fala logo

sobe,

logo sobe pelo corpo — estreando fraturas, reabrindo

brechas (não apenas

simbólicas) onde semear o que jamais

aceita

somente ruir — ação remota

e ao mesmo

tempo interminável: como qualquer tumor:

o corpo

não cessa. O corpo não cessa de ser

erigido;

não cessa (também)

de

ser evocado — e, ainda,

e

-rodido.


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