Prefácio da coletânea de poemas Malemá (Patuá, 2021)

O poeta Rafael Mendes em prefácio de 'Malemá' (Patuá, 2021).

Rafael Mendes. Foto/divulgação. 




Por Rafael Mendes *



O poeta Pedro Moreira me escreve certa noite dizendo “Itaí significa pedra em Tupi Guarani”. Pedra, Pedro. Pouco me surpreendeu que o poeta soubesse a origem do vocábulo que nomeia sua cidade. Porque Pedro sabe o sentido das palavras, torcendo sílabas até que sobre apenas poeira, que permanece nos olhos do leitor após o final da leitura. 

Em outra conversa, perguntei a Pedro se Malemá carregava o mesmo significado empregado na cidade de São Paulo — como quem diz mais ou menos, como quem diz vivo apesar de partido. Sim, o mesmo significado. Ao atravessar os poemas, senti certo desconforto. Melhor, senti o desconforto de Pedro buscando a palavra exata, as imagens mais instigantes, os cinco sentidos do corpo sendo utilizados no papel. Lendo Malemá é fácil ver os vários rascunhos abandonados, as noites em que o poeta pensou em desistir, suas preocupações estéticas, a preferência pelo lapidar, o resultado sendo uma série de poemas que não possuem sobras nem elementos soltos, porque Pedro diz “quero palavra forte / dessas que rasgam o bucho (...) quero palavra forte que cria o mundo”. 

O livro é dividido em quatro seções que não são díspares. Ao contrário, convidam o leitor a entender quatro instâncias do poeta e, ao final, perceber a força inteiriça de sua poesia. As imagens apresentadas são instigantes como quando diz “acender fósforos para iluminar a sede”, “Tem pedaços da bandeira do Canadá / no chão das praças de Rio Grande” ou “como uma gota espermética / escorrendo não pelo canto / da boca mas como a cabeça / de uma criança saindo / da vagina”. 

 

 

 

 

Assim, assim é a primeira e mais longa seção do livro. Reúne como rotas principais: a memória da família a partir da avó e o exílio encontrado na mãe; a flora representada por aroma de arruda e cheiro-verde, a esperança das sementes e das plantas; a paisagem marcada por canaviais, ipês-amarelos e o Rio Carrapatos. Esses elementos reconstituem a infância do poeta, seu fazimento. E aqui temos um dos pontos fortes dos poemas: as vozes que ecoam através da página são tanto reza quanto delírio, formando o “telefone-sem-fio através do tempo”, calçando as bases da história familiar.  

Em outra parte do livro Pedro diz “como um curupira do tempo / vivo com os olhos na nuca” e olhando para trás desvela sua família e a cidade interiorana onde viveu. Sua avó é personagem marcante, emprestando sua sabedoria de benzedeira para o neto e para o mundo “porque o ritmo da sua avó / era o ritmo aprendido das plantas”. A avó aparece como força orientadora da infância, apresentando feras e forças sobrenaturais para o garoto que mais tarde se tornaria poeta — que também é sinônimo de mago. 

Pedro lança perguntas que ressoam no eco das pausas entre leituras: “Que relógio era eu?” e “Você já viu uma pessoa / se desaprendendo de si mesma?”. No fundo das indagações, se percebe uma preocupação em reconstruir o passado para que se possa, como um arqueólogo, entender o agora estudando o antes. Ensinamentos, experiências de quase-morte, quedas no açude, atropelos e réstias de sol são catalogados através das páginas. Assim, o leitor é convidado a visitar poemas memorialísticos que se sustentam nos cinco sentidos do corpo. 

 

 

 

 

A palavra estrela não é encontrada em nenhum poema de Teto Estrelado, mas ali o poeta afirma fundar sua religião. Seu texto sagrado vai do humor da mosca “esfregando as patinhas / como quem diz ora ora” até Frank Ocean afirmando que a infância acabou.  

É uma seção onírica que fala sobre um tempo antes do tempo e compartimenta o significado das afirmações. Talvez, seja aqui onde mais se percebe a influência de Edimilson de Almeida Pereira, dono de uma das epígrafes do livro, pois Pedro não pede escusas, questiona o sentido da pedra, descreve “um rio de prata congelado / onde patinam nossos sonhos” e vibra como se possuído por uma estrela. 

Se os primeiros poemas dão sentido ao mundo, os dois últimos quebram a seriedade da poesia. Como um neto de Nicanor Parra, Pedro constrói um poema usando o elemento sujo e antipoético da mosca, trazendo a leveza necessária para o livro.  

 

 

 

 

“Depois de São Paulo tudo é menor / e inofensivo”. Em Sodade Sodade Pedro, o estudante de Letras que se muda para o Rio Grande do Sul, — porque para quem vem do interior as universidades públicas ficam quase em outro país — anuncia banzo e a solidão num mundo desprovido da mística toponímica que conhecia. Não existem amigos, as lágrimas são secas, busca-se no retrovisor algo que seja íntimo. 

O poeta vasculha seu caminho e percebe que perdeu a casa, o pandeiro, até a si mesmo. Sente-se deslocado porque ali “até o troco é esquisito”. Pedro sente medo e saudade, sabendo que “voltar nunca / é geográfico” e, uma vez que se abandona a casa materna, nada será como antes. Porém, admite que nem tudo é perda, existem novos cheiros, formas de alimentar pombos e praças. 

São poemas que ressoam em qualquer pessoa que tenha atravessado algum tipo de exílio. 

 

 

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Os olhos ardem com a fumaça dos tantos cigarros, a “comunhão tabagista” de um mundo tacanho. O poeta plana por ruas tomadas pela decadente beleza de uma noiva juntando latinhas, garrafas de vodca e velho barreiro, a desolação dos corpos atravessados por balas.  

Paus e Pedras reúne os poemas mais sombrios e incrédulos do livro, remetem aos versos da poeta polonesa Wislawa Szymborska que disse: “somos filhos da época / e a época é política”. Pedro não escapa a realidade atroz do país e, usando o saci, promove “pequenas revoluções lácteas” enquanto ouve amigos, compartilha mais cigarros e imagina o som da concha-cinzeiro. Não é panfletário, mas alguns dos versos demonstram a preocupação social de um homem negro.  

Nem tudo aqui é ferro e sangue. Entre Tyler e Vergílio Ferreira, Black Lives Matter e para-choques, Pedro recolhe palavras das ruas e, artesão, funde belas plaquetas da destruição, pois “fofo / é alguém roncar com a barriga / mas sorrir (dormindo)”. 

 

 

 

 

Apesar de ser livro de estreia, Malemá é uma obra madura, repleta de camadas, de imagens que repousam no avesso dos olhos após a leitura. Nestas páginas, o leitor encontrará um poeta preciso e seguro das escolhas tomadas em cada um dos poemas.  

As quatro partes do livro entregam vetores que se combinam em diferentes pontos, lançando o leitor que vira página após página, dançando leve na poesia de um poeta em formação.  

 

 

* Rafael Mendes (Franco da Rocha, SP, 1993) é poeta , autor de Ensaio sobre o belo e o caos (Urutau, 2018).


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