Um poema inédito

EMPURRE-ME PARA A BEIRA



I

Todos os meus amigos estão mortos.
Não se deve exigir da memória
que retenha
aquilo que dura tão pouco.
Os meus aquis, os meus agoras
— tudo consta extinto.

II

A notícia do fogo
das horas, as perecíveis horas,
só nos chega
quando em fumaça se dissipam,
quando nos alcançam os boatos
e não os nomes,
os costumes e não os fatos
— a boca infestada de falas.

III

Todos os meus amigos
estão no exílio
ou mortos por algum motivo:
uma casa com aquecimento a gás,
uma viagem por estrada de chão,
um emprego sem plano de saúde.
Para ver o Tejo? Não
devemos julgar
aqueles que percorrem
grandes distâncias para ver um rio.
Tremenda é a fascinação
do estado modificado das águas.

IV

Os que me acompanham
nos livros que leio
são de outro tempo
e têm nomes rarefeitos:
Urraca, Mécia, Magela.
Leio como quem convoca os mortos:
“fazei-me companhia”.

V

Não há nada para eles
em meu quarto, contudo.
Porque eles não me visitam
é que, de repente, não sei
de temporada nenhuma.
É culpa dos mortos
que o poeta não vá a lugar algum,
que o poeta fique
e assombre a casa,
que os olhos sigam desocupados
da paisagem. Neste tempo,
não devemos apostar nos dentes
nem no ossuário que habita o corpo.
E porque não se deve
abordá-los é que escolhi
um nome escasso para dizer-me
e os caminhos com que me explico.
Ligeiramente petrificados. Fabricados
com sorte.
Duro menos no nome.
Longo é o meu enredo.

VI

Todos os meus amigos estão mortos.
Tomaram de mim as palavras.
Há vozes do outro lado do mundo.
Você acredita
que desejo a volta das palavras?
Mas não, elas não duram. Aceito
os dentes sem som.
Que retornem. E, com eles, o silêncio.

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